NA COMPANHA DAS CRIANÇAS
Textos do Episódio
Fernando Pessoa
Quando as crianças brincam
Quando as crianças brincam
E eu as oiço brincar,
Qualquer coisa em minha alma
Começa a se alegrar.
E toda aquela infância
Que não tive me vem,
Numa onda de alegria
Que não foi de ninguém.
Se quem fui é enigma,
E quem serei visão,
Quem sou ao menos sinta
Isto no coração.
Jorge de Lima Minha Sombra
De manhã a minha sombra com meu papagaio e o meu macaco começam a me arremedar. E quando eu saio a minha sombra vai comigo fazendo o que eu faço seguindo os meus passos.
Depois é meio-dia. E a minha sombra fica do tamanhinho de quando eu era menino. Depois é tardinha. E a minha sombra tão comprida brinca de pernas de pau. Minha sombra eu só queria ter o humor que você tem, ter a sua meninice, ser igualzinho a você.
E de noite quando escrevo, fazer como você faz, como eu fazia em criança: Minha sombra você põe a sua mão por baixo da minha mão, vai cobrindo o rascunho dos meus poemas sem saber ler e escrever.
Carlos Drummond de Andrade Festa no Brejo A saparia desesperada coaxa coaxa coaxa. O brejo vibra que nem caixa de guerra. Os sapos estão danados.
A lua gorda apareceu e clareou o brejo todo. Até à lua sobe o coro da saparia desesperada.
A saparia toda de Minas coaxa no brejo humilde. Hoje tem festa no brejo!
Vinicius de Moraes São Francisco
Lá vai São Francisco Pelo caminho De pé descalço Tão pobrezinho Dormindo à noite Junto ao moinho Bebendo a água Do ribeirinho.
Lá vai São Francisco De pé no chão Levando nada No seu surrão Dizendo ao vento Bom-dia, amigo Dizendo ao fogo Saúde, irmão.
Lá vai São Francisco
Pelo caminho
Levando ao colo
Jesuscristinho
Fazendo festa
No menininho
Contando histórias
Pros passarinhos.
CecÃlia Meireles A LÃngua do Nhém Havia uma velhinha que andava aborrecida pois dava a sua vida para falar com alguém. E estava sempre em casa a boa velhinha resmungando sozinha: nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem…
O gato que dormia no canto da cozinha escutando a velhinha, principiou também a miar nessa lÃngua e se ela resmungava, o gatinho a acompanhava: nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem…
Depois veio o cachorro da casa da vizinha, pato, cabra e galinha de cá, de lá, de além, e todos aprenderam a falar noite e dia naquela melodia nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem…
De modo que a velhinha
que muito padecia
por não ter companhia
nem falar com ninguém,
ficou toda contente,
pois mal a boca abria
tudo lhe respondia:
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem…
Carlos Drummond de Andrade A Palavra Mágica
Certa palavra dorme na sombra
de um livro raro.
Como desencantá-la?
É a senha da vida
a senha do mundo.
Vou procurá-la.
Vou procurá-la a vida inteira
no mundo todo.
Se tarda o encontro, se não a encontro,
não desanimo,
procuro sempre.
Procuro sempre, e minha procura
ficará sendo
minha palavra..
CecÃlia Meireles Leilão de Jardim Quem me compra um jardim com flores?
borboletas de muitas cores,
lavadeiras e passarinhos,
ovos verdes e azuis
nos ninhos?
Quem me compra este caracol?
Quem me compra um raio de sol?
Um lagarto entre o muro e a hera,
uma estátua da Primavera?
Quem me compra este formigueiro?
E este sapo, que é jardineiro?
E a cigarra e a sua canção?
E o grilinho dentro do chão?
(Este é meu leilão!)