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  • Foto do escritorFábio Malavoglia

Episódio 33

Episódio 33 Relatos breves de John Cage Textos do Episódio



 


Uma vez... John Cage Uma vez, quando vários de nós íamos de carro para Boston, paramos num restaurante de beira de estrada para almoçar. Havia uma mesa perto de uma janela de canto, de onde podíamos, todos, olhar e ver uma lagoa. As pessoas estavam nadando e mergulhando. Havia dispositivos especiais para escorregar pra dentro d’água. Dentro do restaurante havia uma “juke-box”. Alguém pôs uma moeda nela. Observei que a música que saiu dela acompanhava os nadadores, embora eles não a ouvissem.


 


Quando a Filarmônica de Nova York... John Cage


Quando a Filarmônica de Nova York tocou minha Atlas Eclipticalis com a Winter Music (Versão Eletrônica), a plateia mais ou menos jogou o bom comportamento pela janela. Muitos saíram. Outros ficaram para vaiar. Na matinê de domingo, uma senhora sentada ao lado de mamãe estava particularmente violenta. Perturbava todo mundo em volta dela. Quando a execução acabou, mamãe se voltou para ela e disse: “Eu sou a mãe do compositor”. A senhora disse: “Céus! A música do seu filho é magnífica! A senhora quer lhe dizer, por favor, que eu adorei?”



 

Uma mulher visitava...

John Cage


Uma mulher visitava o Museu de Arte de Seattle com seu filho. Várias salas eram dedicadas à obra de Morris Graves. Quando eles chegaram a uma sala em que todos os quadros eram negros, a mãe, tapando os olhos do filho, disse: “Vem, querido, mamãe não quer que você veja essas coisas”.



 


Fiquei surpreso quando...

John Cage Fiquei surpreso quando entrei no quarto de mamãe, no sanatório, ao ver que a TV estava ligada. Era um programa de adolescentes dançando rock-and-roll. Eu perguntei a mamãe se ela gostava da nova música. Ela disse: “Oh, eu não sou muito amarrada em música”. Depois, animando-se, prosseguiu: “Você também não é amarrado em música.”



 


Uma noite

John Cage Uma noite, não tendo nada o que fazer, eu estava caminhando pelo Hollywood Boulevard. Eu parei e olhei a vitrine de uma papelaria. Havia uma caneta mecanizada suspensa no espaço de tal forma que, quando um rolo mecânico passava por ela, executava os movimentos dos mesmos exercícios de caligrafia que eu tinha aprendido quando criança, no terceiro ano. Colocado centralmente na vitrine, estava um anúncio explicando as razões mecânicas para a perfeição da operação da pena mecânica suspensa. Fiquei fascinado porque tudo estava dando errado. A pena estava estraçalhando o papel e esparramando tinta por toda a vitrine e sobre o anúncio que, apesar de tudo, permanecia legível.



 

Dois Monges

(a minha versão de uma história dele, a de Cage é mais enxuta)


Dois monges estavam atravessando um bosque bastante emaranhado e difícil, quando chegaram à beira de um rio. Um deles começou a cruzar o rio, andando sobre a água. Mas o outro, que ficou na margem, começou a gritar e chamá-lo de volta. O primeiro monge então voltou, sempre levitando. "O que foi?”, perguntou. "Não é nada disso!" afirmou o monge que o chamara de volta, "venha comigo!". Continuaram então pela nata cerrada, com dificuldade, até que chegaram num ponto onde havia um vau, e atravessaram por ali, entre as pedras e a água que corria forte. Chegaram do outro lado esgotados. Então o segundo monge virou para o primeiro e disse: “ESTE é o modo espiritual de atravessar o rio...”



 


Kuang-Tsé... John Cage Kuang-Tsé salienta que uma mulher bonita que dá prazer aos homens só serve para afugentar os peixes quando pula na água.



 


As pessoas vivem dizendo... John Cage As pessoas vivem dizendo que o Leste é o Leste e o Oeste o Oeste, e que você tem de evitar de misturá-los. Logo que comecei a estudar a filosofia oriental, eu também fiquei preocupado se valia a pena estuda-la. Isso já não me preocupa. Em Darmstadt, eu estava falando das causas da pulverização e da fragmentação: usando, por exemplo, sílabas em lugar de palavras e letras em lugar de sílabas, num texto vocal. Eu disse: “Separamos as coisas a fim de que elas possam se tornar o Buda. E se esta frase lhes parecer muito oriental”, disse eu, “lembrem-se daquela frase dos primitivos gnósticos cristãos: ‘Rache o bastão e lá está Jesus!’.”



 


Quando falei a David Tudor... John Cage Quando falei a David Tudor que este papo sobre música não era nada mais do que uma série de estórias, ele disse: “Não se esqueça de botar algumas graças divinas”. Eu disse: “O que é que, em nome dos céus, você quer dizer com graças divinas?” “Bênçãos”, ele disse. “Que bênçãos? Deus abençoe vocês todos?” “Sim”, disse ele, “como dizem nos sutras: ‘Isto não é conversa fútil, mas a maior das verdades’.”


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Enquanto caçava cogumelos...

Enquanto caçava cogumelos com Alexander Smith nos bosques perto de Ann Arbor, mencionei o fato de ter encontrado grandes quantidades de Lactarius deliciosus nos bosques ao norte de Vermont. Ele disse: “As hastes eram viscosas?” Eu disse: “Sim eram”. Ele disse: “Não é delicious, é thyinos”. Ele prosseguiu dizendo que as pessoas passam a vida inteira pensando que as coisas são isso quando realmente são aquilo, e que esses erros são cometidos precisamente com as coisas com que as pessoas estão mais familiarizadas.



 


Elizabeth, está um lindo dia...

John Cage


“Elizabeth, está um lindo dia. Vamos dar um passeio. Talvez encontremos alguns cogumelos. Se os encontrarmos, nós os colhemos e comemos”. Betsy Zogbaum perguntou a Marian Powis Grey se ela conhecia a diferença entre os bons cogumelos e os venenosos. “Creio que sim. Mas imagina, querida, como a vida seria chata sem uma certa incerteza”.



 

A vida está mudando...

John Cage

A vida está mudando. Uma das formas pelas quais eu estou tentando mudar a minha é ficar livre dos meus desejos, de modo a não permanecer surdo e cego para o mundo que me rodeia. Quando menciono o meu interesse por cogumelos, muitas pessoas me perguntam imediatamente se eu já tive visões. Eu tenho de lhes dizer que sou muito fora de moda, praticamente um puritano, que o máximo que eu faço é fumar como uma chaminé – agora com dois filtros e um cupom em cada maço – e que eu bebo café de manhã, de tarde e de noite. Eu também beberia álcool, mas caí na asneira de ir a um médico que me proibiu de beber. As visões de que ouço falar não me interessam. Dick Higgins disse que comeu uma pequena muscaria que o fez ver alguns coelhos. Valentina Wasson comeu os cogumelos divinos no México e imaginou que estava na Versalhes do Século XVIII, ouvindo um pouco de Mozart. Sem absolutamente nenhum barato além de cafeína e nicotina, eu estarei amanhã em São Francisco, ouvindo um pouco da minha própria música e domingo, se Deus quiser, vou acordar no Havaí, com mamões e abacaxis no desjejum. Haverá flores perfumadas, pássaros magnificamente coloridos, pessoas praticando o surfe e (sou capaz de apostar) um arco-íris em algum ponto do céu durante o dia.






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