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Foto do escritorFábio Malavoglia

Episódio 42

CONVERSAR COM LOUCOS

Textos do Episódio



 

Torquato Neto

Na Segunda se Volta ao Trabalho

Pois eu vou contar uma história.

Sem pé nem cabeça: você sabe com quem está falando? Eu respondi que não e a autoridade mostrou-se ofendidíssima. Foi por isso que explicou assim:

– Polícia.

Ora, eu agradeci, mostrei meus documentos, o cara conferiu que tudo era legal e estava em ordem e em seguida iluminou-se:

– Ora, bicho, esse teu cabelo está muito grande.

Aí eu fui alugar um apartamento para morar. Quem não precisa de um? Quando a gente mora só e tem quem convide, a gente aceita e evita o vexame. Mas quando a gente tem família, o jeito é aquele mesmo: primeiro enfrentar os porteiros olhando desconfiadíssimos para a minha cara enquanto entregam as chaves. Vai a descarta:

– Acho que nem adianta olhar. Parece que já está alugado.

Pelo telefone os caras não me veem, de modo que a informação é batata:

– É conversa do porteiro.

Aí eu fui lá acertar a transa, assinar os papéis e tal. Aí o cara olhou para a minha. Aí ele conferiu muito e aí ele decidiu:

– Tem gente na frente.

Aí eu saí na rua. Primeiro na Tijuca, onde as pessoas se divertem olhando. Depois na cidade, onde as pessoas me cercaram na Rua da Assembleia e gritavam corta o cabelo dele e tal. A gente pensa: vou tomar muita pancada dessa gente. Eles olham com ódio para o meu troféu. Meu cabelo grande e bonito espanta. Espanta não, agride (a tal palavra) e eu me garanto que eu não corto. História de cabelos...

Um cara suado e de gravata, cara de ódio, ** passa por mim na Conde de Bonfim, cara de uns quarenta anos, cara de pai de família classe média típico nacional, ** passa no seu fusquinhasinho e quando me vê dá um berro:

– Cachorro cabeludo.

Inteiramente maluco, o cara. Doido de pedra. Ou não?

Desci do ônibus e sai andando pela Gomes Freire. Vinha uma senhora gorda fazendo compras com um garoto pequeno e um tipo – filho com jeitão de funcionário sei lá de quê. De longe, enquanto eu vinha, eles já sorriam e cochichavam tramando. Eu vi. Bem na minha frente os três pararam e a vanguarda do movimento adiantou-se – era o garotinho.

– É homem ou mulher?

Eu respondi:

– Mulher.

O rapazinho, o outro, gritou. Atenção: gritou.

– Cala a boca, cabeludo desgraçado.

A mulher deu uma gargalhada e eu passei.

Inteiramente malucos, doidos varridos, doidos de pedra. Ou não?

Aí, crianças, a gente declara novamente: são uns malucos. São uns loucos. São uns totalitaristas: cabeludo não entra. São uns chatos, são loucos, totalmente loucos, e perigosos. É assim que eles estão: doidos, malucos, loucos e perigosos. Ou não?

 

Sérgio Sampaio

Que Loucura ! (letra)


Fui internado ontem

Na cabine cento e três

Do hospital do Engenho de Dentro

Só comigo tinham dez


Eu tô doente do peito

Eu tô doente do coração

A minha cama já virou leito

Disseram que eu perdi a razão


Eu tô maluco da ideia

Guiando o carro na contramão

Saí do palco e fui pra plateia

Saí da sala e fui pro porão

 

Fernando Pessoa Opiário (fragmento) Tenho vontade de levar as mãos

À boca e morder nelas fundo e a mal.

Era uma ocupação original

E distraía os outros, os tais sãos.


 

Fernando Pessoa Sobre um Manifesto de Estudantes (fragmento) Os três volumes intitulados La Folie de Jésus constituem, sem dúvida, um exemplo de probidade clínica e de exposição psiquiátrica. Neles podem os estudantes aprender, lendo, como se demonstra um caso de loucura. Fechados eles, porém, podem aprender, refletindo, que é a loucura que dirige o mundo. Loucos são os heróis, loucos os santos, loucos os génios, sem os quais a humanidade é uma mera espécie animal, cadáveres adiados que procriam.


 

Leopoldo Lugones La Tarde Clara En el jagüel, más trémulo, la rana

Repercute sus teclas cristalinas.

La noche, por detrás de las colinas,

Su ala de torvo azul tiende cercana.

No acaban de decir "hasta mañana",

Locas de inmensidad las golondrinas... ....................................

Leopoldo Lugones A Tarde Clara

tradução Fabio Malavoglia No pântano, mais trêmulo, uma rã

Repercute suas teclas cristalinas.

A noite, por detrás dessas colinas,

Sua asa de turvo azul tende anfitriã.

Mal terminam de dizer "até amanhã",

Loucas de céu as andorinhas divinas...

 

Walt Whitman A Farm-Picture THROUGH the ample open door of the peaceful country barn,

A sun-lit pasture field, with cattle and horses feeding;

And haze, and vista, and the far horizon, fading away. ....................................

Walt Whitman Uma Imagem de Fazenda tradução de Fabio Malavoglia PELA ampla porta aberta de um silente celeiro campesino,

luze o sol sobre o pasto com o gado e cavalos a comer;

e neblina e paisagem e afastado horizonte, fenecendo.

 

Camilo Pessanha Ao longe os barcos de flores Só, incessante, um som de flauta chora, Viúva, grácil, na escuridão tranqüila, - Perdida voz que de entre as mais se exila, - Festões de som dissimulando a hora Na orgia, ao longe, que em clarões cintila E os lábios, branca, do carmim desflora... Só, incessante, um som de flauta chora, Viúva, grácil, na escuridão tranquila. E a orquestra? E os beijos? Tudo a noite, fora, Cauta, detém. Só modulada trila A flauta flébil... Quem há-de remi-la? Quem sabe a dor que sem razão deplora? Só, incessante, um som de flauta chora...


 

Cecília Meireles

A Doce Canção Pus-me a cantar minha pena

com uma palavra tão doce,

de maneira tão serena,

que até Deus pensou que fosse

felicidade – e não pena.

Anjos de lira dourada

debruçaram-se da altura.

Não houve, no chão, criatura

de que eu não fosse invejada,

pela minha voz tão pura.

Acordei a quem dormia,

fiz suspirarem defuntos.

Um arco-íris de alegria

da minha boca se erguia

pondo o sonho e a vida juntos.

O mistério do meu canto,

Deus não soube, tu não viste.

Prodígio imenso do pranto:

– todos perdidos de encanto,

só eu morrendo de triste!

Por assim tão docemente

meu mal transformar em verso,

oxalá Deus não o ausente,

para trazer o Universo

de pólo a pólo contente!

 


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